sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Lula não é uma pessoa comum

Novamente sua excelência prestou um deserviço à nação ao declamar como um rapsodo patrimonialista que o presidente do Senado não é uma pessoa comum. Mais ainda, criticou o “denuncismo” que costuma “não dar em nada”. Mas para além dos descalabros verbais de S. Ex. é preciso refletir um pouco sobre o artefato discursivo lulista, ele contém sábios ensinamentos sobre a “alma brasileira” e tem um destinatário certo.
Não entrarei na discussão político-partidária a respeito da copiosa carreira de José Sarney, oligarca, conservador, ex-udenista, sempre governista, como sabemos. Focar esse aspecto seria envolver-se no cipoal de posições políticas embaçadas de nosso tempo e, mais ainda, reforçaria a frase lulista: sim, Sarney não é uma pessoa comum. Vamos tomar outro rumo, menos personalista.
Quando Lula diz que “não vai dar em nada” se faz de espelho da sociedade, reflete o pensamento do cidadão (será pessoa?) comum, sua descrença nas instituições judiciárias e fornece mais materiais de construção para o conformismo típico de nosso patrimonialismo social. Se por um lado desmancha sua biografia (sim, Lula tem uma história), por outro faz eco ao sentimento popular, Dessa forma, recompõe seu repertório de identificações com as massas populares na base do “ele pensa como nós”. Nada mais pedagógico a um mandatário político brasileiro, expressão bem acabada de nossa tão esfarrapada esfera pública.
Ao dizer que Sarney “tem uma história” e, portanto não pode ser tratado como pessoa comum, o presidente falou muito! Lembrou que o Brasil não é feito de cidadãos, mas de pessoas, distinção sociológica importante em sociedades como a brasileira que operam num dualismo de códigos morais, éticos e jurídicos, para dizer o mínimo. Ter história para começar vale perante a receita federal e seu tribunal tributário e patrimonial, que nos lembra nossos incontornáveis deveres como contribuintes. Mas acima de tudo, ter história vale quando se trata de “antecedentes”, principalmente criminais assegurando ao cidadão (não à pessoa) desigualdades adicionais à nossa desigualdade social. Isso ajuda a entender sociologicamente nossa aversão ao cumprimento das leis: cidadania é via de regra uma categoria negativa no Brasil. Enfim, todos são iguais perante a lei, menos as pessoas incomuns.
Os pertinentes argumentos presidenciais não chegam a ser uma novidade, basta pesquisar nas falas dos titulares republicanos, leia-se da res pública. O manancial de favores, propinas e prebentas de toda a ordem para o amplo círculo de favoritos dos mandatários nacionais, estaduais, municipais alimenta os jornais sazonalmente. O exercício da política brasileira é essencialmente a prática da distribuição discricionária das leis ou de suas omissões. Não estamos no terreno das crises, das exceções, mas das práticas mais arraigadas e tradicionais de nossa sociedade.
Mas não deixemos nos enganar pelo “mundo Caras” dos escândalos, insistindo em demonizações. Os Sarney, seus mordomos e secretários, o presidente e seus lições de senso comum não devem nos fazer perder de vista o óbvio: eles são o Brasil que somente às vezes mostra a sua cara! Nesse carrossel de denúncias e seus difusos autores, os beneficiários não são localizados e tão pouco intimados a devolver o privilégio (estarão na Espanha?). Os Secretas brasileiros são realmente misteriosos, nunca aparecem, talvez por que estejam na nossa cara, transitando normalmente entre o público e o privado. Ainda nesta semana ouvi de mais de uma pessoa como seria bom ganhar 12 mil reais sem fazer nada. Brincadeira, professor!

Mas no Brasil a lei e seu cumprimento, sempre rimam com protestos, críticas, “jeitinhos”, lei do Gerson, teorias da conspiração e outras expressões de nossa sociabilidade tropical. Mas o brasileiro é mestre da dissociação: depois de reclamar da opressão estatal e da frieza da “letra dura das leis”, desloca-se para obter do Estado, onde jorra o leite e o mel, o espólio devido. Editais-relâmpagos, atos nem tão secretos, cargos de confiança, concursos bem direcionados, ajudas econômicas e fundamentalmente: empregos, empregos à mão cheia. ´
Nossa “razão cínica” como diria Jurandir Freire da Costa, desloca sempre as práticas patrimoniais para os outros. Dessa forma a colonização do Estado por interesses privados e sempre apresentada como uma realização exclusiva das elites, dos políticos, do Sarney. A arte da dissociação inclui deslocamentos incessantes, personagens difusos, responsabilidades não identificadas. Finalmente, a noção de uma ética pública no Brasil é absolutamente tíbia e pertence a esforços esparsos. Como esperá-la dos políticos se ela não existe entre nós?
E você, colocou seu carro na calçada hoje? Já pagou aquela “cervejinha” para o servidor público? Furou a fila, driblou os regulamentos e contou para os amigos? Conversou com candidatos para “arrumar uma boquinha”? “Quebrou o galho” para parentes e conhecidos?Condenou investimentos públicos em educação?Culpou os pobres e os nordestinos por nossas mazelas sociais?Afinal, como dizia o Justo Veríssimo: o “negócio é se arrumar”!

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