segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O "X" da Educação I - O cheiro do ralo

Há alguns meses atrás a governadora pediu silêncio aos professores. Para este professor de vinte e poucos anos de magistério e que tem um filho que já é professor, não há gesto mais eloqüente. Do alto do palácio (sim, ainda há palácios) emite-se uma ordem tão simplória quanto obtusa em política: a praça não é do povo. O silêncio é do povo.
Gesto controverso, diriam os editoriais domingueiros: “a governadora fazia referência a outra situação...”, “o gesto não significou afronta...”, etc. Em meio às lógicas interpretativas da pós-modernidade, eis um gesto antigo em inusitadas interpretações, ou melhor, releituras. Afirma-se: a governadora foi mal interpretada. Mas as mídias trazem manchetes informativas: “Magistério deflagra greve a 39 dias do fim do ano letivo”. Por que não esperaram o final do ano? Além disso, somos pedagogicamente lembrados dos sucessos da política de austeridade e recuperação do déficit público. Não há cenário mais previsível? Primeiro: promessas eleitorais, depois realismo orçamentário e finalmente o epitáfio: educação é despesa! No conflito distributivo que habita as entranhas do mercado e do Estado, compreende-se por que sete de cada dez brasileiros não entende o que lê.
Nos últimos anos temos convivido com essa enigmática macroeconomia pública e privada que nos oferece os farelos do “espetáculo do crescimento”, lembrando que poderia ser “bem pior”. O patamar de satisfação beira o lixo orgânico dos sentimentos e vem sempre carregado de temor presenteísta - “pelo menos não...”. Os governantes por sua vez, oferecem aquilo que Ulrich Beck chamou de “irresponsabilidade organizada”, acompanhando na esfera pública estatal a mesma lógica empresarial. Devemos fazer silêncio e agradecer, pois como dizia o guerreiro gaulês ao senador romano feito prisioneiro: “Deixo-vos a vida!”.
Mas voltemos aos professores e seus silêncios. Não seriam sucessivamente mal interpretados como a governadora? Diferentemente de outros profissionais, suas atitudes são, via de regra, desqualificadas por uma miríade de variáveis: ganha mal (ou muito bem), está “estressado” (ou trabalha pouco), tem formação rudimentar (ou “sabe muito”). Qualquer argumento (ou o seu contrário) permite contestar as ações profissionais de um professor. Ou se aplicam os mesmos argumentos e rigores aos dentistas, médicos, arquitetos, advogados, juízes, políticos profissionais, etc?
Aprofundemos a questão. Professores são os únicos profissionais a quem se solicita sacrifícios e de quem se espera resignação, altruísmo, superação, enfim, um ética judaico-cristã que Sísifo nos oferece cotidianamente. Mais ainda, inúmeras vezes são aqueles que gastam do próprio bolso para que as atividades aconteçam, afinal “os alunos não tem culpa”. Diferentemente, alguém recriminou publicamente a GM pelas demissões? Ou o governo pelos seus precatórios eternos? E, finalmente, o que pensa a sociedade sobre os baixos salários dos professores de seus filhos?
Amplamente destituídos de suas capacidades e sem perceber de onde se originam essas forças, os professores recebem, por outro lado, novas responsabilidades; formulando uma dissociação típica da modernidade tardia. Mais profunda que a questão salarial é o processo de destituição subjetiva que mina as forças do profissional e submete-o à arena do assédio moral e dos constrangimentos de inúmeros formatos. Na sociedade onde todos alegam serem os vitimizados é sempre o professor que deve ser flexível.
O magistério sempre foi um vértice na dinâmica social, captando as pulsões sociais, econômicas e políticas da sociedade e experimentando seu campo de tensões. No entanto, nos quadros da sociedade em que vivemos em que a responsabilidade individual ou social foi amplamente substituída por um jogo sucessivo de transferências, o professor recebe a (des)carga de condutas marcadas pela infantilização e vitimização. Na nova sociabilidade hedonista e presenteísta não há tempo para dedicação, disciplina, privação e outras experiências meritocráticas e pedagógicas. Ao professor cabe, apenas, o exercício temerário do simulacro.
Talvez por isso e pelos argumentos expostos acima, professores historicamente se vitimem, exercitando uma ética sacrificial e sua melodia de reclamos que termina por fechar essa dialogia perversa. Além disso, existem ainda as dificuldades de compreender-se profissional numa sociedade capitalista, algo que, acredito, deixamos para trás num passado recente; o que parece evidentemente em tempos de silêncios em praças públicas. E na sala dos professores é que, ao ficarmos cada vez mais perto do chão, vamos sentindo o cheiro do ralo e perdendo o respeito. Para onde foi nossa vontade de potência?

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